5 anos ago
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AJP ·
Comentários fechados em Justiça no feminino
Mais de 45 anos após o fim da proibição do acesso das mulheres às magistraturas, a maioria dos juízes em Portugal é do sexo feminino. Na verdade, uma das transformações das profissões jurídicas tem sido a sua crescente feminização, emergente da democratização do ensino superior e a abertura da judicatura que até à revolução do 25 de abril estava vedada às mulheres. Nas próprias Faculdades de Direito, o número de estudantes mulheres ultrapassa em larga medida os estudantes do sexo masculino.
Vejamos os números: em 1991, num universo total de 1028 juízes, 847 eram homens e 181 mulheres. Cerca de trinta anos depois, em 2018, segundo os últimos dados estatísticos recolhidos pela Pordata, existem 1136 juízas e 752 juízes no ativo (1888), sendo no Supremo Tribunal de Justiça: 44 juízes e 15 juízas; no Tribunal da Relação do Porto: 72 juízes e 40 juízas; no Tribunal da Relação de Guimarães: 33 juízes e 36 juízas; no Tribunal da Relação de Coimbra: 47 juízes e 18 juízas; no Tribunal da Relação de Lisboa: 81 juízes e 75 juízas; no Tribunal da Relação de Évora: 39 juízes e 24 juízas; e na 1ª Instância: 436 juízes e 928 juízas. Assim, em 28 anos, o número total de mulheres na magistratura subiu de 181 para 1136, sendo atualmente cerca de 60% dos magistrados. Ou seja, são as mulheres que prevalecem no sistema judiciário português.
Tal realidade pode ser explicada pela circunstância de a judicatura ter estado vedada às mulheres até 1974: desde então, num fenómeno não restrito ao judiciário, a mulher começou a ambicionar prosseguir profissões qualificadas, numa luta pela liberdade, igualdade e ascensão social. E isto acabou por se refletir, no que se refere à magistratura, numa substituição de um mundo que era exclusivamente masculino, abrindo-o à presença da mulher que rapidamente se conseguiu impor e mostrar o seu valor, logrando mesmo ascender aos Tribunais superiores.
Atente-se que a Vice-Presidente do STJ é Maria dos Prazeres Beleza. No Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a presidente é Dulce Manuel da Conceição Neto. Uma Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, sucedeu a uma Procuradora-Geral da República, a Joana Marques Vidal. No Porto, a Procuradora-Geral Distrital é Maria Raquel Ribeiro Pereira Desterro Almeida Ferreira, assim como a Procuradora-Geral Adjunta Coordenadora na Relação de Guimarães Margarida Maria Pascoal Sarmento. Das 23 Comarcas do país, 9 têm como Presidentes Juízas: Coimbra, Guarda, Leiria, Lisboa, Lisboa Norte, Lisboa Oeste, Portalegre, Porto Este e Viseu. O Ministério da Justiça nos últimos governos tem sido dirigido por mulheres, sucedendo Francisca Van Dunem a Paula Teixeira da Cruz. A própria Ordem dos Advogados já foi liderada por uma mulher, a Bastonária. Elina Fraga. Por seu turno, o Ministério Público é o setor da justiça onde as mulheres estão em larga maioria. Quase 62% do total de 1645 procuradores são do sexo feminino (1019 mulheres e 626 homens).
O relatado permitiria concluir pela circunstância de conseguirem as mulheres aceder a lugares cimeiros da hierarquia judiciária tanto quanto os homens. No entanto, a realidade é bem diferente. No STJ, existem apenas 15 mulheres, sendo que homens são 44. Esta situação contrasta com o que se passa ao nível dos tribunais de primeira instância, onde as mulheres estão em larga maioria.
Não sendo situação portuguesa muito diferente da realidade europeia, uma vez que em 33 países apenas quatro contrariam a regra (a Suécia, com 51% de mulheres, a Roménia, com 78%, e a Moldávia e a Noruega, cujas percentagens não estão publicadas), a verdade é que Portugal continua a ser o país deste continente com o menor número de mulheres no STJ.
Não obstante a disparidade acima mencionada, encontra-se por fazer em Portugal uma reflexão profunda sobre o papel da mulher na judicatura: o número crescente de mulheres no judiciário e o formal exercício dos direitos previstos na lei (o salário é igual, a distribuição de serviço é idêntica e os direitos e deveres inerente à profissão são iguais), não garantem a inexistência de barreiras de género na profissão.
É certo que nas carreiras públicas, as diferenças de condições de trabalho entre homens e mulheres são menos visíveis em função dos concursos públicos e da igualdade de salários – mas tal só encobre as desigualdades existentes. As exigências profissionais dificultam a gestão da vida familiar e é neste aspeto que as desvantagens se manifestam com maior nitidez, bem como no difícil investimento por parte das mulheres na própria carreira, designadamente frequentando ações de formação, mestrados ou pós-graduações ou investindo, por exemplo, em cargos associativos, o que lhes dificulta o acesso aos tribunais superiores dado que nos concursos para o efeito todas estas atividades são priorizadas.
Chegou por isso a hora de averiguar se esta feminização do judiciário tem sido enformada pelo princípio da igualdade ou se há ainda muito caminho a percorrer até que seja uma realidade palpável nesta área soberana da atividade do Estado.
Por Mariana Roque Caetano
Secretária da Direção da Associação das Juízas Portuguesas
Jornal de Notícias, 27 Dezembro 2019, 00:00
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