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    Os processos são compostos por folhas mas têm pessoas lá dentro

    4 anos ago · · Comentários fechados em Os processos são compostos por folhas mas têm pessoas lá dentro

    Os processos são compostos por folhas mas têm pessoas lá dentro

    Desde o dia 16 de Março do corrente ano, o prefixo “tele” faz parte do meu vocabulário: teletrabalho, telescola, telecomando, telemóvel, telepatia, telegrama… Os dois primeiros dispensam apresentações mas potenciam confrontações reais porque, no meu universo, estou sistematicamente abraçada às obrigações profissionais e pessoais (em sentido figurado no que respeita ao meu trabalho pois seria deveras embaraçoso abraçar-me a processos com 9 volumes).

    Os demais prefixos sugeridos são o espelho da centrifugação emocional: garantir o cumprimento de tarefas de natureza urgente e, em simultâneo: descobrir formas mais ou menos pedagógicas e misteriosas de entreter a prole ( telemóvel e/ou telecomando); transmitir-lhes instruções parentais com autoridade exigível (tentei, sem sucesso, a telepatia); manter a concentração na elaboração de peças processuais comunicando/registando mentalmente por singelas palavras , todos os afazeres (“acaba a ficha stop lancha já stop comprar azeite stop rever acórdão stop”)…

    Com um bom humor resistente às intempéries assisto, por isso, com genuína preocupação ao desenrolar dos acontecimentos e após tomar conhecimento da redacção do artigo 6-A constante da Proposta de Lei n.º 30/XIV. Com efeito, privilegiando a realização de diligências judiciais através de meios de comunicação à distância invoca, de igual modo, a necessidade de realização de diligências presenciais quando assegurado “o limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, higiene e sanitárias definidas pela Direção Geral de Saúde (…)”.

    A realidade judiciária vai muito além do inegável respeito pela saúde de todos os intervenientes processuais. Várias questões assaltam-me o pensamento, uma delas com particular incidência: Como compatibilizar o regresso ao trabalho, nas instalações do Tribunal (mutatis mutandis aplicável a outras instalações laborais distintas dos Tribunais), para quem tem filhos menores e/ou familiares dependentes a cargo sabendo-se, por exemplo, que “são consideradas justificadas faltas ao trabalho para assistência a filho ou outro dependente a cargo, menor de 12 anos, decorrentes de suspensão das actividades lectivas e não lectivas presenciais em estabelecimento escolar”?

    Reconheço existirem em determinados agregados familiares soluções de compromisso, mesmo naqueles em que os progenitores desempenham idênticas funções na magistratura ou noutros ramos profissionais. Ainda assim, o recurso às ausências justificadas tem um limite e mantém-se a questão de aferir, para quem tem filhos entre os 12 e 15 anos, as implicações concretas quando essa assistência não é justificada.

    Por alguma razão, felizmente, o paradigma social e familiar no plano da infância e juventude mudou substancialmente desde a Convenção Sobre os Direitos da Criança (CDC), ratificada por Portugal em 21 /09/1990. A família Von Trapp, com o romantismo cinematográfico que lhe assiste, é aquilo mesmo: uma ficção intemporal, não replicável em pleno século XXI.

    Por outro lado, o estado de pandemia não retirou o carácter urgente aos processos dessa natureza: v.g. promoção e protecção de crianças e jovens; maiores acompanhados; insolvências; acidentes de trabalho; impugnações judiciais de regularidade e licitude de despedimento; processos com arguidos presos, entre outros.

    Aliás, sem certezas estatísticas, acrescentaria o reforço do carácter urgente nomeadamente quanto às crianças e jovens, vivenciando situações de perigo, e aqueles que se encontram privados da sua liberdade. Esta nova vaga de individualidade participada e distanciamento de segurança afecta, de igual modo, outros intervenientes processuais (Magistrados do Ministério Público, advogados, funcionários, testemunhas e peritos).

    Termino como comecei, com a renovada esperança de alcançarmos soluções telescopicamente equilibradas na adopção de orientações compatíveis com a realidade dos operadores judiciários, eles, sim, os pilares da Justiça.

    Laura de Simas, 
    Presidente da Assembleia Geral da AJP – Associação das Juízas Portuguesas
    Expresso, 06.05.2020

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